Pense em doxa, aletheia ou episteme e
responda: é possível alcançar a verdade absoluta? A questão aflige
filósofos desde a Antiguidade, mas o dilema é enfrentado cotidianamente
pelos magistrados. Na doutrina, o debate gira em torno do princípio
conhecido como da “verdade real”. E a jurisprudência do Superior
Tribunal de Justiça (STJ) retrata esses confrontos.
Um voto que
define bem o alcance do conceito é o do ministro Felix Fischer, atual
vice-presidente do Tribunal, no Habeas Corpus 155.149. Nele consta a
seguinte citação do jurista Jorge Figueiredo Dias: “A verdade material
que se busca em processo penal não é o conhecimento ou apreensão
absoluta de um acontecimento, que todos sabem escapar à capacidade do
conhecimento humano.”
Segundo o autor, essa verdade real deve
ser lida como uma verdade subtraída das influências da acusação e da
defesa. Também não se trata de uma verdade “absoluta” ou “ontológica”,
mas “há de ser antes de tudo uma verdade judicial , prática e,
sobretudo, não uma verdade obtida a todo preço, mas processualmente
válida”.
No mesmo voto, o ministro critica a concepção ortodoxa
da verdade real, tida como mitificada pelos que seguem essa corrente.
Ele cita Francisco das Neves Baptista: “O mundo da prova é o mundo das
presunções e construções ideais, estranhas ao que se entende,
ordinariamente, por realidade. E o sistema jurídico processual assim o
quer.”
Esclarece o relator: “O princípio da verdade real, para
além da terminologia, não poderia ter – na concepção ortodoxa –
limitações.” No entanto, pondera, “não pode acontecer é reconhecer-se,
como homenagem à suposta verdade real, algo como provado, quando em
verdade, em termos legais, tal demonstração inocorreu”.
Relações jurídicas
Em
voto de 1992, o então ministro Vicente Cernicchiaro explica as razões
dessa diferença de tratamento dada à verdade no processo penal: “O
status de condenado, por imperativo da Constituição, é definido
exclusivamente pelo Judiciário. Não há partes, pedido, nem lide, nos
termos empregados no processo civil. Ao contrário, juridicamente, o
sujeito ativo (estado) e o passivo (réu) não se colocam em posições
opostas. Na verdade, conjugam esforços para esclarecimento da verdade.
As partes, assim, têm a mesma e única preocupação: definir o fato
narrado na imputação” (REsp 13.375).
A decisão da esfera penal
até mesmo prevalece sobre as ações cíveis ou administrativas. Apesar da
independência dos campos jurídicos, quando se trata de autoria ou
materialidade, a decisão penal deve ser observada pelos outros juízos.
Diz o Código Civil, nessa linha: “Art. 935. A responsabilidade civil é
independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a
existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas
questões se acharem decididas no juízo criminal.”
Assim decidiu o
STJ no REsp 686.486: “A decisão na esfera criminal somente gera
influência na jurisdição cível, impedindo a rediscussão do tema, quando
tratar de aspectos comuns às duas jurisdições, ou seja, quando tratar da
materialidade do fato ou da autoria.”
Porém, ressalvou o
ministro Luis Felipe Salomão no caso: “O reconhecimento da legítima
defesa do vigilante no juízo criminal não implica, automaticamente, a
impossibilidade de a parte autora requerer indenização pelos danos
ocorridos, especialmente quando, como no caso ora em análise, pugna pelo
reconhecimento da responsabilidade civil objetiva do banco e da empresa
de vigilância, obrigados em face do risco da atividade”.
O
Código de Processo Penal repete a norma, invertendo a disposição: “Art.
66. Não obstante a sentença absolutória no juízo criminal, a ação civil
poderá ser proposta quando não tiver sido, categoricamente, reconhecida a
inexistência material do fato.”
Nesse sentido, também já
decidiu o STJ: “Não havendo sentença penal que declare a inexistência do
fato ou a negativa de autoria, remanesce a independência das esferas
penal, cível e administrativa, permitindo-se que a administração imponha
ao servidor a pena de demissão, pois não há interferência daquelas
premissas no âmbito da ação por improbidade administrativa.” (AREsp
17974).
“É firme o entendimento doutrinário e jurisprudencial no
sentido de que as esferas criminal e administrativa são independentes.
Apenas há repercussão no processo administrativo quando a instância
penal se manifesta pela inexistência material do fato ou pela negativa
de sua autoria, o que não é o caso dos autos”, afirmou, por sua vez, o
ministro Herman Benjamin no AREsp 7.110.
E, novamente, o
ministro Salomão esclarece: “Somente nos casos em que possa ser
comprovada, na esfera criminal, a inexistência de materialidade ou da
autoria do crime, tornando impossível a pretensão ressarcitória cível,
será obrigatória a paralização da ação civil. Não sendo esta a hipótese
dos autos, deve prosseguir a ação civil.” (Ag 1.402.602)
O princípio da verdade real sustenta ainda outro, o pas de nulitté sans grief,
segundo o qual não há nulidade sem prejuízo. É o que afirma o ministro
Humberto Martins no Recurso Especial 1.201.317: “Não se declarará nulo
nenhum ato processual quando este não causar prejuízo, nem houver
influído na decisão da causa ou na apuração da verdade real.”
Perito menor
É
o risco de violação ao princípio da verdade real que justifica a
impossibilidade de peritos serem menores de 21 anos de idade. O
entendimento é da Sexta Turma, que concedeu habeas corpus a condenado
por roubo em cuja audiência a vítima, surda-muda, teve como intérprete a
filha, de 12 anos.
“A doutrina tende a justificar a proibição
com a ideia de que o menor não teria amadurecimento suficiente para
entender e expressar, na condição de intérprete, os fatos objetos da
imputação. Dessa maneira, a sua atuação poderia comprometer o resultado
da oitiva, o que contraria as bases da verdade real”, explicou a
relatora, ministra Maria Thereza de Assis Moura. (REsp 259.725)
Caso Mércia
O
princípio foi discutido também no caso da morte de Mércia Nakashima. A
defesa do réu pretendia que o processo corresse em Nazaré Paulista (SP),
onde ela teria morrido por afogamento. Isso porque o Código de Processo
Penal (CPP) dispõe que a competência é do juízo do local onde o crime
se consuma.
Porém, o juiz de Guarulhos (SP) afirmou que a regra
deveria ser afastada no caso concreto, em vista da dificuldade que o
deslocamento de competência traria para a apuração da verdade real: das
16 testemunhas de defesa, 13 seriam ouvidas em Guarulhos; o caso teria
causado comoção social nessa cidade; e, de modo geral, a produção de
provas era mais favorecida pela manutenção do processo nessa comarca.
O
Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) seguiu na mesma linha. Para os
desembargadores paulistas, a alteração da competência enfraqueceria a
colheita de provas: “A comarca de Guarulhos é o local onde há maior
facilidade para se apurar os elementos probatórios necessários à busca
da verdade real”, afirmaram no acórdão.
A decisão foi mantida
pelo STJ no HC 196.458: “Ora, deve-se ter em mente que o motivo que
levou o legislador a estabelecer como competente o local da consumação
do delito foi, certamente, o de facilitar a apuração dos fatos e a
produção de provas, bem como o de garantir que o processo possa atingir a
sua finalidade primordial, qual seja, a busca da verdade real”, afirma o
voto do relator, ministro Sebastião Reis Júnior.
“Dessa forma,
seguindo o princípio da busca da verdade real, tem-se que se torna mais
segura a colheita de provas no juízo de Guarulhos”, acrescentou. “O
desenrolar da ação penal neste juízo, sem dúvidas, melhor atenderá às
finalidades do processo e melhor alcançará a verdade real”, concluiu o
relator.
HC da acusação
Um assistente
de acusação invocou o princípio para justificar o pedido de habeas
corpus contra o réu. No HC 40.803, o assistente argumentava que a
legislação deixou “grande lacuna” quanto a seu papel, cujos atos
deveriam ser interpretados com “elasticidade, mormente quando
imprescindíveis para a apuração da verdade real”.
Por isso, o
STJ deveria conceder o habeas corpus para fazer com que fossem ouvidas
pelo júri as testemunhas apontadas pelo assistente de acusação, mas não
arroladas pelo Ministério Público. Mas o pedido não foi conhecido pela
Quinta Turma.
Daniel Dantas
No
julgamento do habeas corpus em favor do banqueiro Daniel Dantas, o
desembargador Adilson Macabu também fez referência ao princípio da
verdade real. Para o relator do caso, a busca da verdade real deve ser
feita com observação da legalidade dos métodos empregados,
respeitando-se o devido processo legal (HC 149250).
Taxa para se defender
A
ministra Maria Thereza de Assis Moura invocou o princípio para afastar a
necessidade de pagamento de despesas com oficial de Justiça para que
fosse ouvida testemunha de defesa. O magistrado havia considerado a
prova preclusa pela falta do pagamento da diligência.
A relatora
do HC 125.883 considerou que, mesmo em casos de ação penal privada,
quando é exigido de forma expressa o pagamento da diligência, o juiz
pode determinar de ofício a oitiva de testemunhas e outras diligências,
“em homenagem aos princípios da ampla defesa e da verdade real, que
regem o direito penal e o processo penal”.
“Tal circunstância
corrobora a ilegalidade aqui constatada, em que se deixou de ouvir
testemunha regularmente intimada pela defesa, em ação penal pública, em
decorrência do não recolhimento antecipado da taxa respectiva”,
concluiu.
Forma sem fim
O princípio
também serviu para afastar a incidência da súmula do STJ que exige a
reiteração do recurso especial após o julgamento dos embargos de
declaração. No caso, após os primeiros embargos terem sido julgados
parcialmente a favor do recorrente, um dos corréus, não beneficiado,
embargou novamente a decisão (Ag 1.203.775).
Antes desse
julgamento, porém, o recorrente apresentou recurso especial. Julgados e
rejeitados os segundos embargos do corréu, ele não reiterou suas razões
recursais, levando inicialmente à negativa de apreciação de seu apelo.
No
entanto, a Quinta Turma do STJ reviu sua decisão inicial em vista do
princípio da verdade real. Para o ministro Jorge Mussi, “exigir-se tal
ratificação, após julgamento de embargos de declaração rejeitados pela
corte local, em que não houve modificação de absolutamente nada na
situação jurídica dos sentenciados, afigura-se um excesso de formalismo,
à luz dos princípios da celeridade processual e instrumentalidade das
formas, principalmente no âmbito do direito processual penal, onde se
busca a maior aproximação possível com a verdade dos fatos (verdade
real) e o máximo de efetivação da Justiça social”.
Segundo o
relator, não haveria por que insistir na reiteração do recurso se não
houve acréscimo, modificação ou supressão de questão de direito ou fato
capaz de influenciar no recurso especial, de modo que não se poderia
“exigir o preenchimento de uma formalidade sem qualquer fim específico”.
A ministra Nancy Andrighi, em voto no REsp 331.550,
manifestou-se pela prevalência da busca da verdade real sobre o
formalismo processual: “Antes do compromisso com a lei, o magistrado tem
um compromisso com a justiça e com o alcance da função social do
processo, para que este não se torne um instrumento de restrita
observância da forma, distanciando-se da necessária busca pela verdade
real.”
Ela também afirmou, no REsp 1.012.306, que “a iniciativa
probatória do magistrado, em busca da verdade real, com realização de
prova de ofício, é amplíssima, porque é feita no interesse público de
efetividade da justiça”. Por isso, o juiz pode ter a iniciativa de
exigir a produção de provas que entender cabíveis, mesmo que não
solicitadas pelas partes.
Direito civil
O
princípio da verdade real é menos presente, ou determinante, nos
processos cíveis. Já dizia o ministro Vicente Cernicchiaro, em 1991: “O
processo penal, ao contrário do processo civil, não transige com o
princípio da verdade real” (RHC 1.330).
É o que se extrai do
voto do ministro Napoleão Nunes Maia Filho: “A relativa independência
entre o orbe civil e o penal não se presta a justificar a possibilidade
de duas verdades conflitantes protegidas pelo universo jurídico. A
finalidade precípua da autonomia é permitir ao juízo penal perscrutar a
verdade real além dos limites dentro dos quais se satisfaria o juízo
civil.” (HC 125853)
Na mesma linha o ministro Mauro Campbell
Marques, ao considerar o dolo do agente em ação de improbidade
administrativa: “A prova do móvel do agente pode se tornar impossível se
se impuser que o dolo seja demonstrado de forma inafastável, extreme de
dúvidas. Pelas limitações de tempo e de procedimento mesmo, inerentes
ao direito processual, não é factível exigir do Ministério Público e da
magistratura uma demonstração cabal, definitiva, mais-que-contundente de
dolo, porque isto seria impor ao processo civil algo que ele não pode
alcançar: a verdade real.” (REsp 1.245.765)
Em 1990, o ministro
Sálvio de Figueiredo já afastava o princípio em certos casos: “Na fase
atual da evolução do direito de família, é injustificável o fetichismo
de normas ultrapassadas em detrimento da verdade real, sobretudo quando
em prejuízo de legítimos interesses de menor” (REsp 4987).
Em
matéria tributária, o princípio também é observado: “Caso os documentos
colhidos pela fiscalização sejam suficientes para a verificação do lucro
real, é com base neste que deverá ser efetuada a autuação, tendo em
vista o princípio da verdade real na tributação”, afirma o ministro
Campbell no REsp 1.089.482.
Registro civil
Assim,
o princípio se aplica aos registros civis. É ele que garante a
alteração dos nomes dos genitores no registros de nascimento dos filhos
após o divórcio. “O princípio da verdade real norteia o registro público
e tem por finalidade a segurança jurídica. Por isso que necessita
espelhar a verdade existente e atual e não apenas aquela que passou”,
afirma voto do ministro Luis Felipe Salomão (REsp 1.123.141).
É
da ministra Nancy a afirmação de que “não pode prevalecer a verdade
fictícia quando maculada pela verdade real e incontestável, calcada em
prova de robusta certeza, como o é o exame genético pelo método DNA”. O
caso tratava de tentativa de alterar o registro de paternidade procedido
pelo marido que fora induzido a erro pela esposa (REsp 878.954).
A notícia refere-se aos seguintes processos:
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fonte: www.stj.gov.br